São Paulo e o seu peculiar calote civilizacional

 

josé Carlos Vaz

Ao longo dos séculos, as sociedades construíram um conjunto de hábitos, princípios e valores com a função de distinguir seus portadores (os civilizados) dos demais. Essas distinções serviram à justificação de desigualdades e opressões. As classes dominantes, a partir de sua adoção, deixavam clara sua superioridade sobre as demais. Os extratos inferiores da sociedade adotavam, na medida do possível, os mesmos hábitos, princípios e valores, e novas formas de distinção eram construídas para continuar garantindo a diferenciação (1).

A ideia subjacente a esse processo é a de que, na medida em que ele ocorria, os que se civilizavam distanciavam-se cada vez mais da barbárie e de um modo de vida baseado na livre expressão dos seus instintos e imerso na precariedade. Civilizar-se é afastar-se das restrições impostas ao ser humano pela natureza, tanto físicas como mentais, e ser capaz de controlá-las. Civilizar-se é abandonar o mundo dos brutos, é deixar de agir como um animal.

Grosz The Agitator
George Grosz – O Agitador, 1928 (clique para saber mais)

Associado à expansão da ciência e de uma cultura material com maior amplitude de recursos e produtividade, esse processo justificava também a colonização, a desigualdade de riquezas e a escravidão. Por outro lado, sua reiteração trouxe novos padrões para as sociedades que se “civilizavam”. Ser civilizado deixou de ser apenas uma atitude individual, e tornou-se um projeto para a própria sociedade sob a liderança dos Estados nacionais. Estes, por meio da educação pública, da legislação, da expansão dos direitos e das políticas públicas assumiram a tarefa de civilizar seu povo.

A civilização tem um preço, entretanto. Melhor dizendo, há vários preços a pagar para ser civilizado. O que me intriga é a enorme dificuldade que São Paulo tem para pagar esses preços.

Para Freud, a existência da civilização depende da capacidade de controle dos impulsos. Assim, o controle do impulso de satisfação imediata dos desejos, em suas múltiplas variantes, é necessário para que a civilização possa manter-se(2). Aqui, vemos o primeiro preço que precisa ser pago pelos “civilizados”: a primazia do coletivo. Para muitos, ainda é uma descoberta a ser feita o fato de que o mundo não gira em torno de si próprios. Considerando que minhas ações impactam na vida do outro, devo tentar agir para, no mínimo, não prejudicar o outro desnecessariamente. A decorrência desse princípio é que os interesses de muitos não podem ser sacrificados pelos interesses de poucos.

Basta sair à rua em São Paulo para constatar que esse é um preço muito difícil de ser cobrado. Veja-se a repercussão negativa de medidas para beneficiar o transporte público, ou a retirada de espaço dos automóveis para devolução para usos socialmente mais equilibrados, como as faixas de ônibus ou as ciclofaixas e ciclovias. Entorpecidos e emburrecidos pelo automóvel, os “civilizados” de São Paulo não se importam que os ciclistas morram atropelados, desde que possam continuar estacionando seus automóveis na porta de casa. Veja-se, também, a resistência contra os limites máximos de velocidade nas vias, ainda que a consequente redução do número de acidentes contribua para a redução da mortalidade e do tempo médio de deslocamento.

O segundo impulso que Freud afirma que necessita ser controlado para viabilizar a civilização é o impulso da agressão, de onde concluímos que o segundo preço a pagar pela civilização é a renúncia à violência física como forma de solução de conflitos e disputas. Não sem motivo, essa foi uma transformação central que possibilitou a emergência dos Estados nacionais. A conquista do monopólio da legitimação da violência pelo Estado não foi desprovida de embates. Entretanto, o processo civilizatório deve trazer não só a concordância dos cidadãos com essa tese, como também que seja introjetada em cada um a repulsa à violência. Para o sujeito civilizado, a violência é repugnante e apenas o Estado pode ser responsável por ela, dentro de normas muito estritas, evitando-se ao máximo. Dentro dessa lógica, quem se vale da violência física são os bárbaros, os selvagens, os não-civilizados. Por exemplo, os ladrões, homicidas e outros criminosos que a ela recorrem. O que é digno de nota em São Paulo é a aceitação e aprovação silenciosa de fatos como o genocídio da juventude negra que ocorre na periferia da cidade, que teve seu ponto máximo nas chacinas de maio de 2006, quando 493 pessoas foram mortas em ações realizadas pela polícia, ou a ela atribuídas, em pouco mais de uma semana (3).

Mais recentemente, dois fatos mostram claramente a recusa a abdicar da violência e, portanto, a negativa de São Paulo a se tornar um lugar civilizado. A indiferença cínica das autoridades e a aprovação (não tão silenciosa) do atentado terrorista à sede do Instituto Lula, em 30/07/2015 foi a primeira delas. A falta de pejo de gente comum em fazer comentários elogiosos ao atentado e a posição de figuras públicas fazendo troça do fato estão muito longe de serem mostras do que se costuma chamar de civilização. Na mesma época, aconteceram dois atentados a tiros contra imigrantes haitianos na região da Baixada do Glicério. Segundo relatos, não foram os primeiros ataques. Houve queixas quanto ao mau atendimento médico e à inação da polícia (4).

Atirar bombas em escritórios, inclusive sob risco de atingir pacientes do pronto-socorro em frente, ou dar tiros em imigrantes negros e pobres, ou mostrar-se indiferente a esses fatos, mostra claramente que essa gente optou por não pagar esse segundo preço da civilização.

O terceiro preço a pagar pela civilização é a tolerância. Este preço deriva do entendimento da singularidade de cada indivíduo. Ninguém é obrigado a pensar como penso, a sentir como sinto. Portanto, a diferença de pontos de vista deve ser respeitada, ainda que não me agradem as opiniões de outrem. O que dizer, então, de um lugar onde as pessoas apanham na rua porque estão usando camisa vermelha, ou onde senhores idosos defensores dos Direitos Humanos são agredidos em livrarias?(5)

O quarto preço que a civilização cobra é o cuidado com os mais fracos. Ao contrário de uma matilha de lobos selvagens, onde os membros doentes são um estorvo e precisam ser eliminados em nome da sobrevivência do grupo, entre humanos “civilizados” existe um imperativo moral de se cuidar daqueles mais fracos. No passado, a religião encarregou-se de introjetar esse valor e de organizar formas estruturadas de prestação de auxílio. Com o fortalecimento dos Estados nacionais, estes assumiram essa função, por meio de leis e políticas públicas. Institucionalizando o que antes era caridade e criando legislação para proteger os grupos mais vulneráveis, o Estado consolidou o princípio de que todos devem ter sua dignidade respeitada, inclusive em suas bases materiais.

Quando se vê o ódio explícito que a população de São Paulo nutre por iniciativas como o Bolsa Família, ou a resistência que coloca contra cotas raciais para as universidades, percebe-se que este preço também não se deseja pagá-lo. Talvez uma inconfessada revolta tenha contribuído para que as manifestações de descontentamento difuso que ocorreram em 2013 tenham se iniciado em São Paulo, logo depois da aprovação da lei de ampliação dos direitos das empregadas domésticas…(6)

Por fim, há mais um preço cobrado pela civilização: os impostos. A manutenção da ordem sem recurso à violência privada para solucionar conflitos, a prevenção e combate à intolerância, as obras e serviços de interesse coletivo e a proteção dos grupos mais vulneráveis requerem que o Estado aproprie-se de recursos dos cidadãos para que possa agir em seu nome. A máquina pública custa dinheiro. Em São Paulo, pouca coisa é mais ofensiva que cobrar impostos, especialmente quando governos de esquerda resolvem fazê-lo. Os mesmos que reclamam da corrupção e da ineficácia das políticas e serviços públicos são os que criticam qualquer imposto ou taxa e subornam fiscais e policiais para escaparem de impostos e multas.

Mas São Paulo, mesmo não se dispondo a pagar os preços cobrados pela civilização, quer ser um lugar de gente “civilizada” e busca subterfúgios para o calote civilizacional que se autoaplica. Talvez sejam resquícios da vergonha como “regulador moral”(7): para Freud, a vergonha é um dos mecanismos essenciais para o controle dos impulsos que levam à barbárie, pois impede que certas coisas sejam ditas ou feitas.

Por isso, São Paulo indigna-se contra a violência praticada contra as pessoas de “bem”, brancas e da classe média, ainda que faça vistas grossas para a violência contra os pobres e os negros. Organiza uma enorme parada LGBT uma vez por ano, mas permite que nos demais dias as pessoas sejam espancadas em sua principal avenida, apenas por conta de sua orientação sexual. Orgulha-se de seu metrô, mas quer as estações longe de casa para não trazer uma “gente diferenciada” para perto de si. Constrói um discurso de meritocracia, mas esconde que o mérito está reservado a poucos, cujas famílias podem dar aos filhos condições para aproveitar melhor as oportunidades de estudo e trabalho, em uma cínica meritocracia dos brancos. Chega-se a dizer que se sonega em legítima defesa.

São Paulo é um lugar muito estranhamente “civilizado”, onde os preços da civilização são pagos com notas falsas e todo mundo faz de conta que são verdadeiras. Como se tem visto, nem mais este consolo restará aos otimistas, pois a vergonha parece esvair-se em um florescente protofascismo que se apodera das pessoas. À medida que a vergonha vá sendo perdida, nem mais essas notas falsas circularão.

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Notas
(1)ELIAS, N. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1994, v I. e ELIAS,N. O processo civilizador:Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993, v. II.
(2) FREUD, S. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanalise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
(3) GONÇALVES, R. De antigas e novas loucas: Madres e Mães de Maio contra a violência de Estado. In: Lutas Sociais, São Paulo, n.29, p.130-143, jul./dez. 2012.
(4) ZÚNICA, Lumi. Haitianos são feridos em dois atentados no centro de São Paulo. Disponível em http://ponte.org/haitianos-sao-feridos-em-dois-atentados-no-centro-de-sao-paulo/. Acessado em 10/08/2015.
(5) FERNANDES, C. O lamentável papel da Livraria Cultura na agressão a Suplicy. In: Diário do Centro do Mundo, 25/10/2015. Disponível em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-lamentavel-papel-da-livraria-cultura-na-agressao-a-suplicy-por-carlos-fernandes/
(6) Esta sugestão foi recebida de Lucimara Lima.
(7) ARAÚJO, U. F. O sentimento de vergonha como um regulador moral. Tese de Doutorado, São Paulo, IP/USP, 1998.

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