A Leitura Quase Obrigatória de hoje trata de um texto de autoria de Renato Dagnino: “Gestão Social e Gestão Pública: interfaces, delimitações e uma proposta, resenhado por Luiz Netto, pesquisador vinculado ao GETIP. Recomendamos a todos uma boa leitura!
Gestão Social e Gestão Pública: interfaces, delimitações e uma proposta (Resenha)
REFERÊNCIA:
DAGNINO, R. Gestão Social e Gestão Pública: interfaces, delimitações e uma proposta. Revista Brasileira de Administração Pública, 3 (2), pp. 93 – 147. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/rebap/article/view/15542/10663
O texto se trata de uma discussão que passa pela trilha de aprendizado e experiências do próprio autor, suas percepções e referências sobre as dimensões da Gestão social, pública e privada, sob o pretexto da democratização em curso no país. A proposta, está em torno da própria metodologia e estrutura cognitiva que o autor utiliza – a concepção político-ideológica e pedagógica do autor é explicitada -, e demonstra o foco que, para se atingir o “Estado necessário”, a formação e aprendizado da complexidade que envolve o plano da realidade e o plano da gestão são indispensáveis para os envolvidos no processo.
Assim sendo, Renato Dagnino busca descrever e explicar as esferas do privado, do governamental e do social – junto à algumas experiências e caminhos pessoais do autor -, para projetá-los no “plano da realidade” e no “plano da gestão”. Utiliza esse caminho metodológico a fim de delimitar as fronteiras entre a gestão privada, a gestão governamental e a gestão social, para por fim, integrá-las como ferramenta cognitiva aos envolvidos.
Ao iniciar a discussão sobre a história dos conceitos de Gestão Pública e Gestão Social, o autor se baseia muito em Francisco Tenório, autor mais citado da área de Gestão Social e numa discussão desse com o Pinho (2010), também referência no tema. O foco no aspecto cognitivo de Dagnino mostra que as discussões desses temas – extremamente ricas – estão, ao mesmo tempo, circunscritas por um propósito em definir algo pelo que ele não é ou deveria ser e não mediante um processo de construção analítico-conceitual (pág. 345). E ele se propõe a essa construção, culminada na teoria de que a Gestão Pública engloba a gestão governamental e a social, discordando da ideia de que essa última seja um “ethos” tanto para a gestão privada quanto para a pública (como alguns autores colocam), e discordando também, da invisibilidade dos espaços, formas de atuação e estilos de gestão que alguns autores acabam por fazer, pois ele acredita que essas diferenças e fronteiras devem ser realçadas.
Passa a introdução e explicação da metodologia o autor percorre brevemente a visão de Francisco Tenório sobre a Gestão Social ao longo dos anos, e concluí com esse parágrafo:
(…) o intento de dicotomizar os significados de gestão social e de gestão estratégica [gestão tradicional, privada] é uma tentativa de não pautar os processos decisórios exclusivamente pela ótica da competição, do mercado tal como se comporta no sistema socioeconomico em que vivemos. Mas sim por meio de cursos de ação compreensivos, voltados para o bem comum e para o bem viver”. O que, segundo ele, seria “Nada utópico se atuarmos razoavelmente com os princípios republicanos”. (pág. 349) GRIFO MEU.
A partir dai, o autor se debruça na “pré-história” dos conceitos de Gestão Pública e Gestão Social, utilizando as suas construções cognitivas sobre o tema (realçando a sua experiência da criação e implantação do curso de formação de tecnólogos em Gestão Pública e Gestão Social na UFBA) e os conceitos de Administração Geral, Administração de Empresas e Administração Pública.
Enfatiza que, até a consolidação da Administração Pública, eram os Administradores de Empresas e outros profissionais que compunham a burocracia. Com o alto grau de complexidade da Administração Pública buscou-se alicerces em conteúdos da Administração Geral, um movimento que para o autor
não esteve suficientemente aberto ao aporte de outras abordagens disciplinares mais afeitas ao tratamento das questões sociais e políticas que inevitavelmente se fazem presentes na interface entre o Estado e a sociedade e mesmo no interior do próprio aparelho de Estado (pág. 353).
A formação das pessoas envolvidas, no melhor dos casos, se deteve na fusão de Administração Geral e disciplinas questionadoras da lógica proprietária, lógica na qual a primeira se baseia por ter a base ideológica do indivíduo ocidental (proprietário de si mesmo), se esquivando do ser político e construindo um administrador/líder diferenciado – enaltecendo uma lógica competitiva – e gerando tensão e dificuldades de síntese. Renato exalta durante o texto, como exceção, o movimento em torno do conceito de Administração Política liderado pelo professor Reginaldo Souza Santos da UFBA (Santos, 2004) e conclui, na página 358, que carecemos de um marco analítico-conceitual específico e adequado à gestão pública e, por isso, é tão importante identificar as diferenças da gestão privada para a gestão pública.
Em seguida o autor inicia a reconstrução de conceitos das relações do privado e do público nos planos da realidade (relações Estado-Sociedade) e da gestão (correspondência profissional do que ocorre no plano da realidade). Mas, antes, realça “a natureza do Estado Capitalista”, que acaba por si só transformando o Estado no mesmo “ser dominador ou líder” citado no parágrafo acima –neutralizando-o politicamente- e que, assim, confina a sociedade ao âmbito privado e ao econômico, um processo que é mascarado pelas relações que se dão entre Estado e Sociedade (políticas públicas) e ajuda a promover a “função naturalizadora” do Estado frente às desigualdades e explorações entre capital e trabalho no plano da realidade. Ou seja, a visão do autor explicita a ideia de que a lógica do capital abrange o Estado e as políticas públicas – influenciando em todas suas etapas e tipos (sociais, econômicas, administrativias, etc) e realçando mais os interesses privados do que os públicos, por isso para o autor
Desconstruir o fetiche do Estado como elemento neutro e situado acima das classes sociais é uma pré-condição para chegar a sua superação por uma forma de organização social alternativa e emancipadora (pág. 366).
As figuras que o autor utiliza para elucidar melhor suas ideias são uma boa linha de raciocínio para identificar a construção dos espaços sociais, totalmente ligados à políticas sociais que, ora são implementadas mais por empresas privadas, ora expandidas pelas organizações públicas, gerando expansão ou redução desse espaço social… Essas figuras mostram o reflexo do plano da realidade para o plano da gestão e, dessa forma, o autor conclui que as políticas públicas e, em particular, as políticas sociais passariam a demandar, não apenas para sua formulação, mas também para a sua implementação, um tipo específico de gestor(pág.373).
Por fim, Renato Dagnino começa a delinear a sua proposta frente ao diagnóstico realizado ao longo do trabalho. A proposta passa pela ideia de construir um “Estado necessário” desconstruindo o “Estado herdado”. Não é a estrutura do Estado que é retrógrada, mas sim a estrutura socioeconômica que fixa a administração estatal e dificulta o atendimento complexo das demandas e o aparecimento de outras através de novas premissas de desenvolvimento (participação, transparência e efetividade).
As mudanças ensejadas estão tanto no âmbito da mobilização social como no plano da gestão, não na focalização em um dos extremos, mas na ponte cognitiva (aqui entra a Universidade Pública como um agente necessário para a mudança) que os dois planos podem criar, ativando capacidades que expandiriam espaços sociais de economias solidárias que hoje são alavancadas com forte apoio da gestão pública e por isso essa não pode ser negligenciada, muito pelo contrário. Por isso, o autor coloca como uma das motivações para esse trabalho a de aumentar as chances de êxito do esforço que deve ser despendido na “frente interna” para gerar as condições cognitivas necessárias à transformação do Estado (pág. 384).
Essa movimentação é inserida na ótica de um ciclo virtuoso que vá da capacitação dos gestores públicos para a transformação das relações Estado-sociedade (pág. 386), ou seja, uma articulação entre a gestão pública, a gestão social e o diagnósticos dos conflitos, diferenças e desigualdades da sociedade sendo realçada e colocada como autocrítica para o próprio Estado.